Das duas uma: ou eu não tenho a menor capacidade de resumir ou então realmente os meus passeios produzem tanta coisa para contar que eu tenho que dividi-los em dois posts.
Com Manchester não foi diferente. Manchester é uma cidade que fica no norte da Inglaterra, bem longinho de Bristol (bem mais longe do que Londres). É uma das mais importantes cidades do país, mas já teve importância maior tanto no cenário inglês como no cenário mundial.
Vou dividir os posts de maneira não-cronológica desta vez. Agora vou contar um pouco da história de Manchester e como isso pode ser apreciado por quem visita a cidade. Portanto, apertem os cintos.
Manchester é famosa principalmente por uma razão: no século XIX a cidade foi o maior pólo industrial do planeta, pois suas fábricas foram decisivas para transformar a Inglaterra na primeira e principal potência da época, liderando a chamada Revolução Industrial. Mas o que foi mesmo a Revolução Industrial?
A Revolução Industrial, que todos nós estudamos no colégio, foi o momento da história em que as ferramentas manuais passaram a ser substituídas pela máquina. Até então as indústrias eram todas manuais e em geral tinham produções em pequena escala. O que possibilitou esta mudança foi, em resumo, a chegada da energia a vapor. Movidas pelo carvão, máquinas a vapor de todos os tamanhos permitiram uma produção muito maior e mais rápida. Isto causou uma mudança enorme na produção de bens de todos os tipos, geração de empregos, surgimento de novas e poderosas indústrias e lucros. Ao mesmo tempo trouxe grandes mudanças sociais, novos costumes, necessidade de deslocar pessoas de áreas rurais para as cidades, de forma a atender a demanda de mão de obra. Era como se a vida das pessoas tivesse virado de cabeça para baixo, ou como se uma autêntica revolução tivesse acontecido. Nada mais natural então, que este momento passasse a ser conhecido daí para a frente como "Revolução Industrial". Infelizmente, junto com o desenvolvimento por ela trazido, veio também a exploração desumana dos trabalhadores, em um mundo onde ainda não havia leis trabalhistas para protegê-los. A Inglaterra foi o pais precursor da Revolução Industrial. Suas minas de carvão, o bem estruturado sistema de transporte deste mineral através de canais, bem como sua excelente rede ferroviária, deram aos ingleses a dianteira neste novo mundo movido a vapor. E cidades como Manchester tiveram uma participação decisiva naquele momento, que foi o início do período áureo da Inglaterra.
Ok, ok, chega de aula. Vamos ver como o turista bobão aqui pôde de fato vivenciar a Revolução Industrial nas alamedas de tijolos vermelhos de Manchester.
A cidade tem um bairro quase inteiro no estilo do século XIX. Só andar pelo bairro já é como andar num museu a céu aberto. Ele chama-se Castlefield e fica relativamente perto do centro da cidade. Dentro dele encontra-se talvez a maior atração de Manchester, o MOSI, Museu da Ciência e Indústria. Os próprios prédios do museu (são 5) ficam em antigas fábricas de verdade da cidade. E eu acho que já disse isso aqui, mas repito: inglês sabe fazer museu. E tudo de graça.
O primeiro prédio que entrei era o dos motores e energia. Motores propulsionados por vento e água foram trocados pelos propulsionados pelo vapor gerado a partir da queima do carvão. Ser um engenheiro nessa época na Inglaterra deveria ser muito divertido, pois cada motor era construído para uma determinada função. E lá os monitores botam os motores para funcionar, então todo mundo pode ver como a energia é produzida a partir da queima de umas pedrinhas. Para quem nunca viu ou para quem não sabe como funciona um motor, como as crianças, deve ser uma descoberta fascinante. Um dos maiores motores aqui era o que propulsionava a Ponte de Londres a içar para os navios passarem.
Em seguida fui ao prédio do transporte e das comunicações. A revolução dos motores acabou levando ao desenvolvimento de sistemas de transporte mais rápidos e eficientes, trazendo a população do campo para a cidade. Daí vieram os trens e suas locomotivas a vapor. E depois os veículos movidos a motores de combustão. E mais tarde os primeiros aviões. E com as pessoas mais longe umas das outras e os negócios aumentando, desenvolveu-se a telecomunicação, a fotografia e a imprensa. Tudo retratado fielmente por máquinas da época.
O terceiro prédio pra mim foi o mais sensacional. É o prédio das fábricas e equipamentos. Sabe o que é ver um tecido de algodão sendo feito na sua frente, passo a passo, desde o algodão sujo vindo das plantações, tudo com máquinas do século XIX? Eu achei o máximo. Eles têm apresentações diárias (que duram 1 hora cada mais ou menos) onde eles mostram como as máquinas realmente operavam, usando equipamentos originais da época. Tem algodão e papel, duas das principais indústrias da cidade. Naquela hora estavam apresentando a de algodão. Interessante que Manchester era conhecida como Cottonopolis (ou cidade do algodão) em função do assombroso número de fábricas como aquela que existiam na cidade, tornando-a por muitas décadas o principal pólo têxtil do globo. O algodão primeiro é limpo, depois separado em função dos tamanhos, depois os de mesmo tamanho são agrupados, depois juntados para formar fios mais grossos, depois enrolados para dar resistência aos fios, depois enrolados ainda mais para dar mais resistência, depois entrelaçados para dar o padrão de tecido, e finalmente cortados na forma de tecidos úteis para venda. Cada etapa dessa têm uma máquina especial, todas funcionando com energia a vapor. O barulho é ensurdecedor (isso porque era 1 máquina, imaginem centenas juntas dentro de um mesmo prédio). Crianças a partir de 5 anos trabalhavam embaixo das máquinas em cantinhos onde ninguém podia chegar. Mulheres faziam trabalhos mais leves (como aspirar um dos instrumentos para enovelar o algodão) e os homens os que exigiam mais força (como puxar as prensas dos teares). Todos ficavam surdos, com os pulmões cheios de poeira, sem um braço ou perna cortados pela máquina, mas tudo em nome da produção, sem direitos trabalhistas.
O quarto prédio foi outro genial. Talvez não tanto quanto o anterior porque muita coisa que eu vi lá eu já conhecia ou sabia como funcionava. É o prédio da Ciência. Manchester virou uma cidade riquíssima, atraindo gente e negócios, e consequentemente cultura e conhecimento. Professores e cientistas de várias áreas vieram para a cidade para fazer seus estudos, pois lá havia dinheiro para montar uma boa estrutura e equipamentos. A maioria foi trabalhar na Universidade de Manchester, que virou uma das mais renomadas do mundo, mantendo seu prestígio até hoje (foi de lá que saiu o Nobel de Física desse ano, a descoberta do grafeno). Destaco três cientistas muito bem retratados lá:
- Joule (lê-se Jú, ou então o Teng te morde!) foi um físico que descobriu que o calor é uma forma de energia, não um fluido conhecido como calórico. Essa descoberta só foi possível devido à criação e construção de equipamentos precisos de medição de temperatura, que sem o dinheiro gerado por Manchester não seria possível. Essa descoberta levou em última análise à Primeira Lei da Termodinâmica, a lei da conservação da energia. Sem essa Lei a ciência como conhecemos hoje simplesmente não existiria.
- Dalton foi um inglês especializado em não ser especialista em nada. Era um cientista completo, por assim dizer. Sabe o daltonismo, síndrome de pessoas que não distinguem as cores? Foi Dalton quem descobriu (ele próprio era daltônico). Sabe a chuva? Foi ele que explicou que ela advém de uma mudança de temperatura, não de pressão atmosférica. Mas suas mais famosas pesquisas foram no campo da Física e da Química. Foi ele quem disse que a matéria é constituída de átomos, bolinhas indivisíveis que compõe tudo que existe (antigamente pensava-se que a matéria poderia ser dividida quantas vezes se quisesse). Isso foi uma descoberta absolutamente brilhante e que revolucionou os estudos em Química. Deu origem aos conceitos de elemento químico, massa atômica, reação química. Além disso, algumas das mais importantes leis que governam o comportamento dos gases foram elaboradas por Dalton. E os equipamentos e notas de laboratório de Dalton lá expostos no museu. Pode parecer tosco, mas juro que arrepiei. Ah, com tudo isso ele nunca teve tempo para se casar...
- Rutherford foi o cara que basicamente disse que Dalton estava errado. Seus estudos vieram quase 100 anos depois dos de Dalton, portanto equipamentos e conhecimentos disponíveis foram muito superiores aos disponíveis quando Dalton propôs a teoria atômica. Na verdade, muito do que Dalton propôs estava certo, mas suas afirmações sobre o átomo ser uma esfera neutra, rígida e indivisível estavam erradas. Mas como que alguém conseguiu provar isso se até hoje não é possível ver como o átomo é por dentro? Em função de pesquisas paralelas de gente como Maxwell e Einstein sobre estrutura da radiação e da luz, Rutherford fez um testezinho bacana passando um feixe de partículas alfa (de carga positiva) por uma chapa fininha de ouro, ele verificou que o feixe se desviava ou era rebatido quando batia na chapa de ouro. Ora pois, se o átomo é indivisível e não tem carga, como isso é possível? Isso o levou à formulação do modelo atômico de Rutherford (que até hoje é o mais conhecido popularmente), com um núcleo pequenininho de partículas positivas (prótons) rodeado por elétrons ainda menores orbitando loucamente ao redor do núcleo e cheio de espaço vazio. Esse modelo foi outro passo gigantesco para a verdadeira compreensão de como é matéria é feita. E imagine eu, químico que sou, diante da famosa chapa de ouro de Rutherford. Fiquei na sala dele quase meia hora (e quase sozinho).
Enfim, acho que deu para vcs terem uma boa ideia do porquê Manchester se tornou o centro de produção de bens e conhecimento que transformaram o mundo para sempre, para o padrão de vida que hoje vivemos.
Classe dispensada!
Me parece que alguém está com saudades de ser monitor...
ResponderExcluirMas é muito legal isso mesmo.
Você tem visitado tanto museu que seus descendentes até a 5 geração não terão nem que fazer história da ciência com o Gildo...
Só espero que não tenha encontrado muitos sinais de vandalismo, como no jardim botânico!
Aqui esse tipo de expressão de amor entre semelhantes não é tolerada pelos hoolingans. Eles podem até vandalizar tudo, mas não como no Jardim Botãnico.
ResponderExcluirEu estava meio desatento na aula, mas gostei da parte da folha de ouro do Rutherford!! Eu quero!
ResponderExcluirViu como a prática é importante?
Ao invés do professor Tibúrcio, creio que seria mais pertinente colocar o menino sapeca comendo maçã, enquanto a voz do além diz: Senta que lá bem a história!
ResponderExcluirFeito!
ResponderExcluirSerei o primeiro a comentar isso mas se critico critico por bem: André, seu tópico acabou espantando os freqüentadores do blog! E isso ainda é a parte 1! Por isso, como especialista em assuntos aleatórios acredito que seja melhor para você padronizar: faça posts com no máximo 500 palavras. Agora se me perguntar como contar as palavras eu me retiro! Esse post tem 1.646 palavras e 14 imagens. Se você cadenciar seus posts isso vai fazer com que outras pessoas possam ler seus comentários e queiram saber o que vem a seguir: se você tivesse postado um museu por vez eu iria ficar imaginando qual seria o próximo. Crie o suspense André, justifique a foto com o Hitchcock! Abraços e continue postando coisas legais!
ResponderExcluirConcordo em partes com o misterioso deus egípcio. Tem muita gente que não sabe ou não lembra das coisas deste post, e eu gosto de pensar que ao explicar essas coisas vou além da mera descrição de fotos ou piadas infames, como são o mote de outros posts. E isso não vou deixar de fazer, até porque vc tem a opção de só ler os posts curtos ou aqueles que te interessam. Mas concordo que este post em particular está longo demais e tem muita informação. Me empolguei! Mas vou me redimir na Parte 2 em sua homenagem.
ResponderExcluirPosts com piadas infames...
ResponderExcluirse não for assim, vou ter que tirar meu blog do ar!
Eu achei legal o post, li em duas etapas, e não tive problemas... só acho q faltou o Galeno...
malditas piadas infames...